O duelo dos Farrapos
Já um ror de vezes tenho dito — e provo — que fui ordenança do meu general Bento Gonçalves. Este caso que vou contar pegou o começo no fim de 42, no Alegrete e foi acabar num 27 de fevereiro, daí dois anos, nas pontas do Sarandi, pras bandas e já pertinho de Santana.
Foi assim. Tenho que contar pelo miúdo, pra se entender bem. Em agosto de 42, o general, que era o presidente da República Rio-Grandense — vancê desculpe… estou velho, mas inté hoje, quando falo na República dos Farrapos, tiro o meu chapéu!... — o general fez um papel, que chamavam-lhe — decreto — mandando ordens pr’uma eleição grande, para deputados; estes tais é que iam combinar as leis novas e cuidar de outras cousas que andavam meio à matroca, por causa da guerra.
Em setembro houve a eleição; em outubro já se sabia quem eram os macotas votados, que eram quase todos os torenas que andavam na coxilha. O jornal do governo deu uma relação deles e dos votos que tiveram, que eu sabia, mas já esqueci.
Por sinal que esse jornal chamava-se — Americano — e tinha na frente um versinho que saía sempre escrito e publicado e que era assim, se bem me lembro:
“Pela Pátria viver, morrer por ela;
Guerra fazer ao despotismo insano;
A virtude seguir, calcar o vício;
Eis o dever de um livre Americano”.
Em novembro, os deputados, que eram trinta e seis, mas que só se apresentaram vinte e dois, juntaram-se em assembléia; em dezembro, logo no dia um, foi então a cerimônia principal.
O general foi em pessoa, como presidente, com a ministrada, os comandantes de corpos e outros topetudos, e aí fez uma — Fala — muito sisuda e compassada, que todos escuitaram quietos, só sacudindo a cabeça, como quem dizia que era mesmo como o general estava lendo no escrito.
Uê!... e que pensa vancê?... Estava tudo na estica, sim senhor: fardas novas, bainhas de espada, alumiando; redingotes verdes ou azuis com botões amarelos, padres com as suas batinas saidinhas; um estadão! E famílias, muita moçada fachuda, povaréu, e até uma música. Eu e o outro ordenança, os dois, mui anchos, de gandola cobrada.
Por esse entrementes, no Estado Oriental, andava gangolina grossa entre Oribe e Rivera, que eram os dois que queriam o penacho de manda-tudo. Volta e meia as partidas deles se pechavam e sempre havia entrevero.
Ah! se vancê visse a indiada daquele tempo… cada gadelhudo... Ah! bom!... Mas, como quera, onde se encontrasse, a nossa gente entropilhava-se bem com a deles. E mesmo era ordem dos sup’riores.
Quando íamos mal da vida, já pelas caronas, nos bandeávamos para o outro lado da linha; lá se churrasqueava, fazia-se uma volteada de potrada e voltávamos à carga, folheiritos no mais! O barão Caxias, que era o maioral dos caramurus, mordia-se com estas gauchadas.
Mas tanto Oribe como Rivera nos codilhavam quando podiam, porquanto faziam também suas fosquinhas aos legais... apertavam o laço pra nós, mas afrouxavam a ilhapa pra eles...
Vancê entende?... Pau de dois bicos!... — Mas, vá vancê escuitando.
Rabo-de-saia é sempre precipício pros homens...
Não vá vancê cuidar que no caso andou mulher botando fungu no coração de ninguém, não, senhor; a cousa foi muito outra, de alrifage… Naquele novembro de 42, quando os deputados foram-se ajuntando, de um a um, vindos de todos os rumos da província da República e havia na vila do Alegrete movimento de comitivas e piquetes, um dia, já à boquinha da noite, chegou uma carreta de campanha, mui bem toldada, com boiada gorda, e escoltada por um acompanhamento grande, de gente bem montada e armada.
Chegou o combói e parou em meio da praça; e logo o que vinha de vaqueano cortou-se e foi apresentar o passe e outros papéis; e foi dizendo que a pessoa que vinha na caneta era uma senhora-dona viúva, que trazia ofício pra o governo e que era sobre uns gados que haviam sido arrebanhados e cavalhadas, e prejuízos e tal, e mais uma conversa por este teor e com mais voltas que um laço grande enrodilhado... Foi isso o que correu logo no redepente da curiosidade.
Papéis foram que a tal dona trazia, que logo o general mandou chamar os deputados e os ministros e depois se trancaram todos numa sala grande; e depois despachou um capitão para ir buscar a figurona.
E ela veio; e mal que chegou o general veio à porta, fez um rapapé rasgado e foi com ela pra tal sala onde estavam os outros.
Se era linda a beldade!... Sim, senhor, dum gaúcho de gosto alçar na garupa e depois jurar que era Deus na terra!.
E destorcida, e bem-falante; e olhava pra gente, como o sol olha pra água: atravessando!
Dentro da sala, fechada, ia um vozerio dos homens; depois serenava; parece que eles estavam mussitando; e a voz da dona repenicava, hablando un castellano de mi flor!
Lá pelas tantas levantaram o ajuntamento; o mesmo capitão foi levar a dona. E de manhã, nem carreta, nem boiada nem comitiva apareceram mais.
Depois é que vim ao conhecimento que aquela figurona tinha vindo de emissária. Rivera era mais valente; Oribe era mais sorro: mas, os dois, matreiraços!...
Agora, qual dos dois, pra disfarçar dos caramurus o chasque, mandou, em vez dum homem, aquela vivaracha, qual dos dois foi, não pude sondar. Era assunto encapotado...
Depois desse dia começou a haver um zunzum mui manhoso contra o general.
Não sei se era inveja, ou intrigas ou queixas ou ganas que alguns lhe tinham. As cousas foram-se parando embrulhadas na tal assembléia e uma feita, não sei por que chicos pleitos o general e o coronel Onofre Pires tiveram um desaguisado; o general deu as costas, num pouco caso e o coronel saiu, num rompante, batendo forte os saltos dos botins.
Em 43 houve outra arrancada braba, foi quando mataram um Paulino Fontoura, que era um pesado. Houve outro bate-barbas entre o general e o coronel Onofre, que era mui esquentado e cosquilhoso.
Mas logo os chefes todos se desparramaram, porque o barão Caxias andava na estrada, levantando polvadeira.
E brigou-se! Em S. Gabriel, na Vacaria, em Ponche Verde, no Rincão dos Touros. O governo tinha saído do Alegrete e estava outra vez em Piratinim; aí por perto peleou-se, e no Arroio Grande, em Jaguarão, nas Missões, sobre o Quaraim, em Canguçu, em Pai Passo.
Que ano que bebeu sangue, esse!
E quando o exército se amontoou todo, pra lá do Ibicuí e depois foi estendendo marcha, houve um conelho grande de oficiais; e aí se falou outra vez na emissária, a fulana, aquela da carreta, no Alegrete. Aí, então, os dois galões-largos se contrapontearam outra vez.
A gente como eu é bicho bruto e os graúdos não dão confiança de explicar as cousas, por isso é que eu não sei muitas delas: tenência não me faltava; mas como é que eu ia saber as de adentro dos segredos?...
Já sobre o Garupá — vancê não conhece? são os campos mais bonitos do mundo! — aí os homens se cartearam.
Então já era o ano 44. O coronel escreveu barbaridades; o general respondeu com aquele jeito dele, sisudo.
E quando foi no dia 27 de fevereiro o general me chamou e mandou que eu fosse levando pela rédea, para a restinga, os dois cavalos que estavam atados debaixo dum espinilho; era um picaço grande e um cobrado.
Fui andando; lá longe ia descendo um vulto, atrás de mim vinha outro.
E devagarinho, como quem vai mui descansado da sua vida, os dois.
Ah! esqueci de dizer a vancê que atravessado debaixo da sobrecincha de cada flete, vinha uma espada.
Reparando, vi que as duas eram iguais, de copo fechado e folha grande, das espadas de roca, que só mesmo pulso de homem podia florear.
E quando parei e os dois vultos se chegaram, conheci que eram o meu general e o coronel Onofre. E desarmados…
Mas como chegaram, cada um despiu a farda, que botou em cima dos pelegos e desembainhou a espada que vinha.
O cobrado era do coronel; o picaço, do general.
Então o general deu ordem:
— Espera aí, com os cavalos!
E o coronel também:
— Bombeia; se chegar alguém, assobia!
E rodearam a restinga, para o outro lado.
Então é que entendi a marosca: eles iam tirar uma tora, dessas que não se fira duas vezes entre os mesmos ferros...
Maneei os mancarrões e com um olho no padre, outro na missa, por entre as ramas da restinga, fui espiar a peleia.
Estavam já, frente a frente, de corpo quadrado.
O sol dava a meio, para os dois.
O general Bento Gonçalves era sacudido no jogo da espada preta; meneava o ferro, que chispava na luz, co-mo uma fita de espelho; o coronel Onofre parava os botes e respondia no tempo, mas com tanta força que a espada assobiava no coriscar.
Nisto o general pulou pra trás, fincou a espada no chão e pegou a tirar o tacão da bota, que se despregara.
O coronel encruzou os braços, e a espada dele ficou dependurada da mão, como dum prego.
Pra um que quisesse aproveitar... Mas qual... aqueles não eram gente disso, não? E cruzaram, de novo. Em cima da minha cabeça um sabiá pegou a cantar… e era tão desconchavado aquele canto que chora no coração da gente, com aqueles talhos que cortavam o ar, que eu, que já tinha lanhado muito cristão caramuru, eu mesmo, fiquei, sem saber como, com os olhos nos peleadores, os ouvidos no sabiá, mas o pensamento andejando... nos pagos, no meu padrinho, no Jesu-Cristo do oratório da minha mãe...
Os ferros iam tinindo, E nisto, o coronel deu um —ah! — furioso, caiu-lhe da mão a espada… e a sangueira coloreou pelo braço abaixo, desarmado, entregue!...
Pra um que quisesse aproveitar... Mas qual! aqueles não eram gente disso, não!
O general tornou a cravar a espada na terra e veio ao ferido com bom jeito.
Pegou o braço, viu o ferimento; e com um lenço grande que levantou do chão, do lado do chapéu, atilhou o talho para estancar o sangue.
O outro, calado, nem gemia.
Depois o general tornou a pegar da espada, fez uma inclinação de cabeça ao coronel e caminhou pra cá…
Foi o quanto eu me atirei pra trás e me acoc’rei perto dos cavalos.
Vestiu a farda, embainhou a espada e montou. Então me disse:
— Agora vem gente, que eu vou mandar. Não te movas daí, antes.
E deu de rédea, a galope, para o acampamento.
E no silêncio que ficou, só ficou balançando no ar o canto do sabiá, na restinga: do outro lado, o sangue do coronel, pingando nos capins; deste lado, eu, sabendo, mas não podendo me intrometer...
— Agora veja vancê se não foi mesmo o fungu daquela tal dona — emissária dum dos dois sorros castelhanos — que veio transtornar tanta amizade dos farrapos?...
Ela só não pôde foi mudar o preceito de honra deles: brigavam, de morte, mas como guascas de lei: leais, sempre!
Pois não viu, naquelas duas vezes?… Pra um que quisesse aproveitar...
E creia vancê, que lhe rezei este rosário sem falha duma conta, apesar de já sentir a memória mais esburacada que poncho de calavera... Pois faz tanto ano!...
João Simões Lopes Neto